Logo que se virava a primeira rua à esquerda, mais alguns passos, você podia achar a casa. Não tinha como errar: alpendre, porta com janelinha, cerca de madeira e duas imensas palmeiras ladeando a entrada. Casas mais antigas sempre chamaram a minha atenção (e chamam até hoje). Elas tem muito mais estilo em relação ao que se constrói atualmente. Possuem detalhes em todos os cantos, provas de um capricho costumeiro em uma época na qual o tempo abundava.
Nesta casa tão simpática morava a Dona Mulher. Não era casada, não tinha filhos, mas tinha o privilégio de dividir o seu espaço com seus gatos de estimação. Sempre que vi a Dona Mulher ela tinha uma expressão que combinava bem com a sua morada. Diria que formavam uma dupla perfeita. Até onde sei a palmeiras majestosas que adornavam sua fachada haviam sido plantadas pelo seu pai, quando construiu a casa (dito isso, imagine quanta história pode morar em qualquer lugar por aí, por onde você passa todos os dias). Para variar, tinha muita vontade de entrar naquela casa pois tinha certeza que tudo ali dentro seria tão pitoresco quanto o lado de fora. Também nunca conversei com a Dona Mulher, mas se o fizesse acho que ela poderia me contar causos de outros tempos, poderia contar como era seu pai e como foi que decidiu plantar as tais palmeiras. Iria me falar os nomes dos seus gatos e contar como cada um é especial à sua maneira.
O tempo passa para todos e os cabelinhos da Dona Mulher deixaram de ser grisalhos para ficarem branquinhos, sempre curtos e (des)arrumados em cachinhos por toda a sua cabeça. Usava óculos, mas suas armações haviam parado no tempo sem prejudicar absolutamente a sua figura. Nos dias de feira era mais comum vê-la conversando na calçada. Sempre do mesmo jeitinho, só que agora era a Dona Velha e para ela arrumaram um cachorro, ou melhor, uma cadela. Seu contingente de gatos havia diminuído drasticamente e nem imagino quem foi que achou que aquela bichona tão grande e escandalosa fazia o estilo da Dona Velha. Nunca soube a opinião dela a respeito.
O ritmo no qual o tempo passa é sempre o mesmo, mas a quantidade de mudanças que acontecem na mesma unidade de tempo fica cada vez maior. E neste turbilhão a vizinhança mudou muito. Prédios novos, muitos carros, menos árvores, menos flores, até a feira encolheu, assim como a Dona Velha que me parecia menorzinha a cada vista. E ela foi decaindo assim como a sua casa, carente de alguma manutenção. Mas nem uma, nem outra perdiam seu charme que as tornava especiais.
Eu já não morava mais por perto há algum tempo e depois disso pouquíssimas vezes revi a Dona Velha. Até que ela se foi. Por que não? Confirmou nossa certeza cabal quando em vida e encerrou suas atividades por aqui. Pouco tempo depois sua casa foi posta à venda. Claro que nos interessamos. Seriam vários sonhos em um: morar numa casa, morara numa casa estilosa e morar na casa da Dona Velha! Na minha cabeça já fazia a divisão dos espaços, onde ficaria minha oficina e onde seria a super garagem do Baltazar. Até saber do corretor a valor pedido. Murchamos. Era uma cifra para pessoa jurídica. Mesmo assim sempre cumprimentava a casa da Dona Velha quando passava em frente. Por respeito e muita consideração.
A placa de vende-se foi e voltou umas três vezes. Fiquei até com receio de que a casa fosse invadida por moradores de rua pois seu aspecto era de abandono. Numa certa segunda-feira vi que a porta da frente estava aberta, a placa estava deitada ao chão e ouviam-se vozes. Compraram. Certamente seria derrubada para dar lugar a algum prédio. Nada hoje foge deste destino. Naquela noite contei para o Baltazar que pensou em passar pelo local para tentar comprar a porta com janelinha ou qualquer outra coisa que pudesse ser preservada para contar história. Não sei de onde tiramos a ingenuidade de achar que no final de semana a seguir seria possível fazer isso. No local da casa havia um imenso buraco. Não era um vazio, era um buraco mesmo. Baltazar imediatamente já foi pelas beiradas até chegar ao fundo, antes mesmo que eu pensasse "cuidado para não cair". Eu fiquei na parte da entrada mesmo, vendo um resto do piso do alpendre e as duas palmeiras que pareciam ainda mais altas sem nada atrás delas.
Basicamente queremos, nesta vida, amar e ser amados. Vendo aquele buraco de terra tive uma sensação de desamor. Quem fez aquilo nem sonha sobre a existência da Dona Velha e de verdade também não quer saber. Era uma casa velha que deu lugar a algo novo. Todo mundo acha que o que é novo sempre é melhor. Parece que onde estava a casa será a entrada de um.....(adivinhe!).....condomínio. Sim, mais um lugar onde a falsa sensação de segurança e completude será vendida e certamente terá quem compre. Sinto que não há mais espaço para o que é especial, para o que é tradicional, para o que é detalhado, para o que leva tempo para ficar pronto. Só fui tirada deste labirinto de questionamentos quando o Baltazar retornou com um tijolo e a parte da frente de uma gaveta. Toda a lembrança que podemos ter da Dona Velha estavam nas suas mãos.
Desde então monitoro com certa angústia a existência das duas palmeiras que tem suas bases escondidas por tapumes azuis. Quero muito acreditar que se não foram derrubadas e picotadas para virar salada de plamito de peão até agora e porque alguém teve o bom censo de preservar estas árvores seculares para embelezar a entrada da sua obra dispensável.
Quanto à parte da gaveta resgatada da demolição, ganhou algum tratamento e virou um digno porta-chaves que também sustentará meus aventais. Fiz questão de não remover todas as falhas pois elas me lembram que o tempo sempre passa e que não importa o que façamos por aqui, nenhum de nós é eterno. A não ser as boas lembranças. Estas durarão para sempre.
Nossos bons sentimentos para a Dona Arminda que sempre preservou a beleza no mundo.
É, de fato tudo muda, todas as coisas acontecem com a ligeireza dos atuais dias, dizem uns que esta velocidade infindável que percebemos é decorrente da famosa “Era de Aquário” , se é que existe de fato. Mas o que vemos é o tempo correndo como se estivéssemos em uma maquina de viagem temporal, onde tudo acontece com presteza vertiginosa e quando nos damos conta estamos no final de mais um ano. E tudo vai ficando para trás, as lembranças, as coisas, os momentos e repentinamente tudo se transforma, tudo toma outra cara, o que antes era dá lugar ao novo, e as lembranças ficam esquecidas em algum lugar da mente de alguns observadores recatados e perplexos e mesmo que se tente lembrar daquela localidade as lembranças nos pregam peças, confundindo ainda mais aos tem tentam preservar aquele momento especial de uma época que não mais existe. Acredito que no caso em tela as arvores foram preservadas em decorrência de uma sensata lei ambiental, pois se não houvesse qualquer determinação neste sentido elas, por certo, também iriam se juntar ao tijolo e a tampa da gaveta.
ResponderExcluirNossa, olha a hora da postagem, 15:08 e 19:08, nunca mais, acho que vou jogar neste numero, rssss
ResponderExcluirOpa! Vamos dividir o prêmio então!
ResponderExcluirAcho que a D. Velha ficaria muito honrada em saber de todo esse cuidado e atencao. Só poderia vir de pessoas como vcs! Beijos! Andrea
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