Ele estava na fila há anos. Pelo menos quatro anos. Nunca cobrou satisfações pela espera e nunca questionou meus critérios. Permanecia pegando poeira numa serenidade invejável. E acho que era justamente essa calma que foi me irritando. Aquele olhar vago e indiferente que me mirava do alto toda vez que eu me aproximava. Eu estava prestes a começar um novo colar quando decidi colocar um ponto final naquela situação. Ninguém é obrigado a viver com esse tipo de assédio - velado e constante. Trouxe-o para perto de mim, livrei-o da poeira e posicionei-o bem na minha frente. Nos encaramos em silêncio. Antes que o momento ficasse constrangedor, decidi iniciar a conversa inevitável. Fui direta: "Sei que falhei com você. Sei que não cumpri as promessas que te fiz quando te trouxe para junto de mim. Mas você certamente se lembra que as mudanças vieram rápido e transformaram tudo o que conhecíamos. Não quero tentar me justificar, pois nada do que eu disser mudará o tempo que você ficou à espera. Apenas gostaria que você soubesse que não foi descaso. Tinha muita coisa acontecendo e eu não queria que você terminasse num lugar comum. Entenda que o problema era eu, e não você. Porém, proponho deixarmos tudo isso para trás e tentarmos alguma solução agora. O que eu te ofereço nesse momento tem relação com o que mais acredito hoje. Então você receberá tampas de garrafa e restos de cortes de pastilhas, porque meu pote de restos está muito cheio. A cor predominante será azul, porque tem azul demais no pote. Só por isso. E então, você topa?"
O porta-incenso nunca respondeu. Felizmente. Caso contrário eu precisaria conhecer o serviço de psiquiatria de Herrsching (se é que tem um por aqui). Ainda que discutir a relação com uma peça de MDF não pareça lá muito normal, pelo menos não faz mal a ninguém.
Além das pastilhas e das tampas, usei também canutilhos e miçangas. Preciso confessar que sinto um prazer psicótico em colar miçangas. Por isso tenho planos de usá-las em tudo o que for possível. |
Para a pintura do MDF, escolhi preto e dourado. |
Eu não sei se ele, o porta-incenso, gostou das combinações que fiz, pois tenho medo de perguntar. Na verdade, tenho medo que ele responda...
Test-drive de gavetas. Aprovado. |
Testando a queima do incenso, revendo antigas paixões e dando as boas vindas ao outono. Ciclos que se encerram, ciclos que se iniciam. |
Você deve estar pensando que é muita solidão ter conversas profundas com objetos inanimados. Bem, em algum aspecto, sim. Entendo a solidão muito menos como estar fisicamente só e muito mais como estar fora de contexto. É estar rodeado de pessoas e sentir-se um ET. Isso para mim é solidão. Estranhamente, não enxergo um atributo negativo nisso. As coisas são como são e tudo são momentos que, com suas características, se alternam em nossa existência. Simples e misterioso. Pensei novamente sobre isso no último pôr-do-sol que vi. Desses pensamentos saiu isso aqui:
"A cidade onde ouço meus passos".
Meu calçado é ordinário.
A calçada é ordinária.
Ainda assim escuto meus passos.
Sempre que saio à rua eu os escuto, em tom alto e definido.
Há outras pessoas, mas parece que elas não andam ou talvez nem estejam ali.
Só os meus passos marcam compasso.
Os outros não tem pés? Talvez flutuem. Não sei.
Não importa o caminho que percorram, meus passos, que são os únicos que fazem barulho, sempre me conduzem ao lago.
Lá o chão é de pedras e todos os passos fazem o mesmo barulho...mas só os meus pés se machucam.
Só os meus pés não conseguem me sustentar nus sobre as pedras sem sucumbir à dor.
Sei como me defender da dor.
Então, todos andamos sobre as pedras, mas eu posso andar mais rápido ou ir mais longe.
Não sei se isso é uma vantagem.
No fim, todos chegam na água.
Até a próxima!
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