Olá!

Aqui você encontra vários tipos de textos com reflexões, introspecções, filosofadas e relatos, tudo sob a luz do mosaico. Desejo inspirar você com a mesma arte que me inspira.

A vida no Aquário.

Na ocasião da mudança de Berlim para Herrsching, encontrar um novo apartamento foi uma tarefa inglória. Na primeira tentativa visitamos alguns imóveis na cidade de Munique e, dentro da faixa de aluguel que poderíamos pagar, vimos muita...qual é a melhor palavra?...muita bosta. Sim, bosta define com exatidão. Para nos animar ainda mais, não gostamos da cidade. Sabe quando você vai num restaurante caro, super recomendado, e se depara com uma comida totalmente insossa e um serviço muito meia-boca? Foi essa a nossa primeira (e segunda e terceira e quarta e quinta e sexta...) impressão da capital do estado da Bavária. Voltamos para Berlim degustando o sabor amargo do futuro sombrio.

Pensamos, ponderamos e concluímos: Munique não vai rolar. Não existe Berlim em Munique, logo não faz tanta diferença estar ou não na cidade. Ajustamos o foco da busca para locais que não fossem longe do trabalho e para imóveis que tivessem o que o apartamento de Berlim não tinha: aconchego e luz natural. Já que passaríamos naturalmente mais tempo dentro de casa, ela precisaria ser agradável. Um tempo depois, fizemos a segunda tentativa. Apesar de uma visão "bostérica" aqui e ali, as coisas pareciam mais possíveis, ainda que muito aquém do desejado. Na manhã do dia da volta tínhamos uma última visita marcada. Na véspera havia nevado muito e no caminho completamente embranquecido que avançava para a área rural fui sentindo um desespero crescente. "É aqui que eu vou morrer", pensei "e ninguém vai saber. Ninguém perceberá que eu morri e meu corpo será encontrado depois de dias ou semanas, já em decomposição". Quando chegamos de fato na cidade a sensação só piorou. A essa altura eu já estava chorando. Compreenda, não é fácil quando você fica sabendo onde vai morrer. Nem tive tempo de tentar elaborar meu luto, pois, ao chegar ao endereço, o casal de corretores já nos aguardava sorridente. Sabe-se lá com que cara eu tentei sorrir de volta e iniciamos a visita. O banheiro não tem janela, mas a vista da sala é bonita. A cozinha é microscópica, mas o cômodo ao lado tem um  janelão que vai de uma parede à outra e do chão ao teto. Pesando prós e contras, foi esse o apartamento escolhido. Decisão tomada, documentos enviados, fomos aceitos pelos locadores, etc., etc., etc., mudamos.

Após dois anos aqui posso dizer que luz é muita coisa na vida do ser humano. Muita coisa mesmo! Tendo constatado isso, decidimos não colocar nenhum tipo de cortina no janelão para não perder um raio de luz sequer. Isso significa que temos plena vista da rua...e ela de nós. Aí começa uma parte muito interessante: já reparou como somos naturalmente curiosos? Se não fosse assim, ninguém se daria ao trabalho de fazer vitrine numa loja. Adoramos olhar através de janelas. Queremos saber como é a casa dos outros, como escolheram decorar, queremos ver o que fazem dentro de casa, o que fazem da vida. Queremos saber um monte de coisas sem importância, que não levam a nada e isso é uma característica de nossa condição humana. Com o nosso janelão/vitrine/aquário não é diferente. São muitos os olhares que entram aqui pelo vidro. Alguns distraídos e outros mais intencionais. Neste momento de "invasão" ninguém espera ser ele também o observado, por mais óbvio que isso seja, afinal o vidro é transparente para os dois lados. Quando nossos olhares se cruzam, há os que desviam imediatamente, num certo constrangimento que para mim indica algum peso na consciência, e há aqueles que ficam mais um segundo processando o que está acontecendo. Para esses, se meu humor permite, sorrio levemente e aceno. Então há, mais uma vez, uma divisão: os que fazem cara de quem foi flagrado roubando doce do mercado (olha a consciência pesada aí...) e os que sorriem ou acenem de volta. Nós, humanos, somos realmente fascinantes!

Foi essa interação involuntária com desconhecidos que me inspirou a fazer esse mosaico.

Uma pupila de fundo de copo de aperitivo, recheado com miçangas e uma gema de vidro. Uma íris de pires de xícara de café.

As pálpebras ultra contraídas são conchas pintadas com esmalte de unhas.

O acabamento das margens do meu manifesto são quartos de rolhas pintados.


A visão.

É um lembrete simpático de que a observação pode ser uma via de mão dupla, o que a torna mais justa no seu ponto de partida. Como cada um observa, aí já é uma outra história.

Alguém já me perguntou se não nos sentimos expostos demais com essa janela. A resposta é sim. Porém eu não quero abrir mão da luminosidade. Mas tem uma outra coisa. Com o passar do pouco tempo que aqui estamos (mesmo que todos os dias pareça uma torturante eternidade), entendi que não são esses os olhares, através da janela, que me perturbam. Esses são quase pueris. Os olhares que me incomodam são os que acontecem quando estamos no mesmo ambiente do observador, sendo medidos da cabeça aos pés para sermos classificados de acordo com um esteriótipo que existe na cabeça de quem observa. Essa semana mesmo passei por um momento glorioso desses. Ao oferecer ajuda a um senhor que não conseguia se entender com a máquina de bilhetes da estação, tive minha alma sugada para fora do planeta Terra pelo olhar aterrorizado de uma pessoa que estava na fila. Por que as diferenças nos causam tanto espanto? O que será que aquela pessoa viu ali para lhe assustar tanto? Será que era a cena de uma pessoa oferendo ajuda a outra? Ou será que era a cena de uma pessoa branca falando com uma pessoa preta? Não tem como saber. A única coisa que sei fazer é colocar o meu olhar à disposição, é fixar meus olhos no fundo dos olhos de quem me observa. Quem sabe alguém de nós saia destes momentos com alguma resposta.

Até a próxima (vista)!




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